Arquivo do blog

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

A identidade franciscana em permanente formação

Por Frei João Mannes, OFM
Em documentos oficiais do Secretariado Geral OFM para a Formação e os Estudos, reafirma-se constantemente a clara consciência de que a Formação Permanente é um processo contínuo de crescimento e de conversão que compromete toda a vida da pessoa. Assevera-se que a vocação do irmão menor não é uma realidade estática, mas um processo evolutivo na vida evangélica e no seguimento cada vez mais radical de Jesus Cristo. Pois, compreende-se fundamentalmente a vida humana como um processo permanente de formação em todos os aspectos da existência humana.

A palavra “formação” nada tem a ver com o significado veiculado pelo senso comum de colocar o homem numa “forma” ou num modelo já pré-existente de homem. O termo indica, sim, a dinâmica de formar, forjar e encadear a própria dinâmica de constituição do ser-homem. O ser humano tem de ser, tem de se construir como ser humano. Já tornou-se “lugar comum” a proposição de que a existência humana é um processo. A palavra processo vem do verbo latino procedere, e significa “sair para fora, avançar, ir para diante, enaltecer-se”. De modo que é próprio da existência humana ex-sistere, transcender-se continuamente, avançar para novas e mais autênticas possibilidades de ser humano.

São Francisco de Assis construiu a sua identidade no seguimento radical de Jesus Cristo, até transformar-se num alter Christus. Em outras palavras, o santo de Assis deu um sentido (direcionamento fundamental) religioso e cristão à sua existência. De modo que a identidade humana pode ser cristã e franciscanamente concebida. Nesta perspectiva fala-se de gestação da identidade franciscana de cada irmão ou irmã. A identidade franciscana não está diante de nós como um objeto e tampouco está dentro de nós como algo subjetivo, mas – conforme lê-se na Regra Bulada - se constrói através de um trabalho árduo, paciente, longo e constante, sob a inspiração do “espírito de oração e devoção, ao qual devem servir todas as coisas temporais” (RB, 5,2). Isto quer dizer que a identidade franciscana não está no operar em si, mas em dispor-se inteiramente e deixar-se conduzir pelo hálito divino que nos inspira, impele e impulsiona em todas as ações e atividades urgidas pela Igreja e pela sociedade hodierna. Por conseguinte, a Formação Permanente não se restringe a cumprir um programa de atividades (cursos, revigoramentos, retiros etc.), mas indica a contínua gestação da identidade franciscana na ausculta obediente da voz do Filho de Deus, no seguimento de Jesus Cristo, ao modo de S. Francisco. Este empenho implica todas as dimensões da pessoa (corporal, psicológica, afetiva, espiritual, intelectual), bem como a vida da fraternidade local, no seio da Província e da Ordem.

Por ocasião da celebração do oitavo centenário da Regra e Vida de S. Francisco insiste-se particularmente na necessidade de voltar às origens do ideal franciscano. Voltar às origens não significa retroceder 800 anos na história, mas, atento aos desafios atuais, colocar-se novamente no fluxo e no ritmo da inspiração divina que desencadeou o movimento franciscano. Na Regra não Bulada alude-se a tal inspiração nos seguintes termos: “Se alguém, por divina inspiração, querendo assumir esta vida, vier procurar nossos irmãos, seja por eles recebido benignamente” (RnB, 2,1). O “ponto de partida” de nosso ser, sentir, ver, julgar e atuar no complexo mundo contemporâneo é a inspiração divina. Aqui está verdadeiramente o “húmus” que torna possível tanto a formação inicial como a Formação Permanente. Por isso, deve-se buscar, desde o primeiro instante na vida consagrada, o amadurecimento no espírito originário próprio da Ordem. Pois, só é possível aprofundar-se e aperfeiçoar-se naquilo que já começou em nós.

Por conseguinte, uma das idéias fundamentais da formação daquele(a) que se lança na busca da perfeição evangélica, na esteira de S. Francisco, é a de que ela constitui um dos fenômenos constitutivos da vida religiosa franciscana e, portanto, não restrito aos anos da formação inicial. A Formação Permanente não é apenas um período que segue a formação inicial, mas é uma atitude de vida, um processo de conversão contínua, uma exigência permanente de fidelidade à própria vocação e missão na Igreja e na sociedade de hoje. Modelo arquetípico de Formação Permanente é o próprio S. Francisco que, longe de reconhecer-se perfeito, suplicava humildemente a Deus “poder consumar, de maneira perfeita, o que antigamente começara com simplicidade e devoção” (1Cel, 2,92). Até o fim de seus dias Francisco sentiu a exigência de ficar fiel ao que havia começado em sua forma de vida. Fidelidade não é um estado de perfeição, mas é, em meio às infidelidades e decadências diárias, sempre de novo empenhar-se até o fim para bem corresponder ao amor de quem nos ama por primeiro.

A Formação Permanente não tem o sentido genérico e indiferenciado de uma formação cultural-humanística, mas, prioritária e especificamente, tem o sentido de formar para e no seguimento da pobreza e humildade de Nosso Senhor Jesus Cristo (RnB 9,1), nas concretas situações de nosso tempo. Atesta-se, então, que a formação é um processo permanente de educação. Na visão do educador pernambucano Paulo Freire, “é na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade”.

De fato, a consciência de nossa in-conclusão é imprescindível para a Formação Permanente. Compreender-se como frade já feito, perfeito, atravanca o processo de Formação Permanente e torna inócuo qualquer programa elaborado nesta perspectiva. Pois, o processo formativo se dá como a dinâmica de auto-constituição de cada frade. Neste processo convém que os irmãos estimulem-se e confortem-se mutuamente na fraternidade. Porém, ser mais ou menos fiel à vocação requer de cada um uma vontade firme, vigorosa, intensa, absolutamente intransferível. Em outras palavras, a fidelidade à vocação religiosa franciscana requer de cada um engajamento livre, total e permanente. Se, portanto, vivemos em risco permanente de decair do status de religioso é porque não estamos na religião como animais que não podem deixar de ser o que são. Como diria o filósofo espanhol Ortega y Gasset, “enquanto o tigre não pode deixar de ser tigre, não pode destigrar-se, o homem vive em risco permanente de desumanizar-se”.

O constante perigo de extraviar-se do caminho da religião e de secularizar-se exige, portanto, preocupação permanente, vigilância contínua com relação ao próprio da existência religiosa. Porém, perseverar até o fim no caminho é muito mais do que simplesmente não decair; é deixar-se impelir sempre de novo por uma possibilidade mais perfeita de ser religioso. De fato, pode-se buscar a excelência também no seguimento de Jesus Cristo. A nobre tarefa do formador é, de exercício em exercício, sem cessar, fomentar a irrupção do “religioso para além do religioso”. E cada irmão é por vocação um formador, sobretudo de si próprio.

Portanto, a identidade franciscana não é dada de antemão, mas está em permanente formação. A Formação Permanente do religioso e da religiosa franciscana é uma pro-vocação para uma radical trans-formação de vida, à luz da ausculta obediente da Palavra do Filho de Deus e da Regra e Vida de S. Francisco. No termo trans-formação, o prefixo latino trans, significa ir além de, ir adiante, ultrapassar metas já alcançadas. Jesus de Nazaré é exemplo arquetípico de homem que deixou-se transformar no decurso de sua vida, isto é, chegou à missão pública através de um progressivo amadurecimento da dimensão humana, intelectual e espiritual: “crescia em sabedoria, idade e graça” (Lc 2,52). Igualmente Francisco, embora já tivesse alcançado um alto grau de perfeição diante de Deus “e brilhasse com obras santas entre os homens deste mundo (...), pensava sempre em começar coisas mais perfeitas” (1Cel, 6,103). Na concepção do Poverello de Assis, “não progredir sempre era retroceder” (2Cel, 118,159). Enfim, a consciência de que o religioso(a) não está pronto, mas em Formação Permanente no discipulado de Jesus Cristo, é imprescindível para a sua educabilidade no espírito originário franciscano.

Frei João Mannes, OFM, é Doutor em Filosofia e leciona no Instituto de Filosofia São Boaventura, em Curitiba (PR)
Extraído de http://www.franciscanos.org.br/noticias/noticias_especiais/identidadefr_240108/
acesso em 14 ago. 2008.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Firefox