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quinta-feira, 2 de outubro de 2008

São Francisco de Assis, uma alternativa humanística e cristã

Leonardo Boff
O contato com Francisco produz uma crise muito profunda e salutar. Sua figura envolve os leitores dentro de um círculo luminoso no qual descobrimos nossa mediocridade e lentidão face aos apelos que vêm da verdade mais profunda do coração e do evangelho. Ele conduziu sua vida sempre a partir da utopia e a manteve viva como uma brasa contra todas as cinzas do dia-a-dia e a razoabilidade da história. Incorporou o arquétipo da integração dos elos mais distantes, historizou o mito da reconciliação do céu e da terra, dos abismos e das montanhas. Daí o fascínio que se irradia dele e a catársis humana e religiosa que ele opera.

Diante de Francisco descobrimo-nos imperfeitos e velhos. Ele aparece como o novo e o futuro por todos buscado, embora tenha vivido há 800 anos. Mas este sentimento é sem amargura, pois sua mensagem encerra tanta doçura que o medíocre se sente convidado a ser bom, o bom a ser perfeito e o perfeito a ser santo. Ninguém fica imune à sua convocação vigorosa e ao mesmo tempo terna.

Francisco em sua gesta nos coloca imediatamente diante do evangelho e do sermão da montanha. Tomou absolutamente a sério a mensagem de Jesus como se lhe fora dirigida pessoalmente a ele. Assumiu tudo ad litteram et sine glosa e procurou viver com coração generoso e alegre. Não queria saber de interpretações. Bem sabia que quase sempre as interpretações emasculam a força do evangelho. E o evangelho lhe era simplesmente a formula vitae.

Se procurou orientar-se sempre a partir do evangelho e não da sensatez da razoabilidade, não era, entretanto, um fanático. Por isso se abraça a vida evangélica mostra também o sentido de uma regra; se vive do carisma compreende igualmente a instituição; se se entrega às duras penitências, sabe também alegrar-se e ser com todos cortês; se assume uma pobreza radical, postula outrossim uma fraternidade extremamente sensível à satisfação das necessidades uns dos outros; se é rigoroso para consigo mesmo, mostra-se ao mesmo tempo compassivo para com o confrade que grita na noite: morior fame!

Sempre segurou firme os dois pólos, mas começando todas as vezes pelo pólo do evangelho. Quebrou sem receios as barreiras instituídas para assegurar a vida livre do evangelho. Por isso é que nele coexistem admiravelmente ternura e vigor, que resultam da tensão sustentada permanentemente entre o evangelho e a regra, entre o sermão da montanha e a ordem. Se houvesse apenas vigor, emergiria então a figura de um santo duro, inflexível e sem coração. Se houvesse somente ternura, projetaria a imagem de um santo sentimental, adulçorado e sem perfil. Ternura e vigor compaginando-se na mesma pessoa criam o sol de Assis, como diria Dante, sol que gera ao mesmo tempo luz e calor, sol cantado pelo Poverello como “belo e radiante e com grande esplendor”, mas também criam a lua com sua luminosidade amena e amaciadora de todas as pontas que ferem e fazem sangrar. Francisco aflora assim como um homem solar e lunar, integração feliz dos opostos.

Francisco faz ainda um apelo de inaudita importância para a nossa situação atual. Vivemos num mundo de objetos; tudo é feito objeto de troca, de interesse, de negociação, de falsificação, de mascaramento e de fetichização. As coisas mais e mais perderam seu uso humano direto e simples como satisfação de necessidades objetivas que devem ser atendidas coletivamente. Com sua pobreza radical Francisco postula uma radical expropriação, especialmente do dinheiro cuja natureza se resume em ser puro objeto de troca sem nenhum uso a não ser a troca. Inaugura, no exato momento de formação do espírito capitalista, assentado na troca, uma existência humana que se baseia unicamente no valor do uso: duas túnicas, um capuz, calçados para os que precisam, os instrumentos de oração e de trabalho. A ausência de qualquer excedente visa, limpar o caminho de todos os obstáculos para o encontro dos homens entre si em sua transparência de irmãos, servindo-se mutuamente como convém entre membros de uma mesma família. Este projeto pode parecer utópico e, de fato, o é. Mas a utopia pertence à realidade porque esta não se resume naquilo que é e pode ser medido, mas muito mais naquilo que nela é possível e pode ser no futuro. A utopia expressa as possibilidades todas da realidade concretizadas. Porque ainda não foram concretizadas, ela convoca para novas realizações, a superar o já feito e ensaiado na direção de formas mais plenas e humanizadoras.

A utopia de Francisco de uma fraternidade sem plus-valia e, por isso, não exploradora, anima as buscas modernas por caminhos de satisfação das necessidades coletivas com o menor custo social e pessoal possível.

A seriedade evangélica de Francisco vem cercada de leveza e de encanto porque é imbuída profundamente de alegria, finura, cortesia e humor. Há nele uma inarredável confiança no homem e na bondade misericordiosa do Pai. Em conseqüência exorcizou todos os medos e ameaças. Sua fé não o alienou do mundo nem fez dele um mero vale de lágrimas. Pelo contrário, transformou-o pela ternura e pelo cuidado em pátria e lar do encontro fraterno, onde os homens não aparecem “como filhos da necessidade, mas como filhos da alegria” (G. Bachelard). Podemos dançar no mundo porque ele constitui o teatro da glória de Deus e de seus filhos.

Francisco de Assis mais que um ideal é um espírito e um modo de ser. E o espírito e o modo de ser só se mostram numa prática, não numa fórmula, idéia ou ideal. Tudo em Francisco convida para a prática: exire de saeculo, sair do sistema imperante, numa ação alternativa que concretize mais devoção para com os outros, mais ternura para com os pobres e mais respeito para com a natureza.

Texto do livro de Leonardo Boff, “São Francisco de Assis, Ternura e Vigor”, Editora Vozes, 1981.

Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/especiais/2008/saofrancisco_011008/sf_humanistica.php
acesso em 02 out. 2008.

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