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segunda-feira, 30 de março de 2009

A utopia da vida e da morte

Frei Neylor J. Tonin
Lembra-te, ó Homem, do que escreveu Santo Inácio de Antioquia (séc. II), em sua Carta aos cristãos de Magnésia: “Tudo terá um fim. Mas dois termos nos são propostos: a morte e a vida” (5.1).

A vida e a morte! De tua vida, conheces a data e o local de nascimento. De tua morte, faltam-te ainda o onde e o quando, para fechar tua biografia. Nascer, viver e morrer são marcos de uma história, da qual muitos, infelizmente, desconhecem a razão e a utopia.

Mas voltemos ao santo. Para que possas admirar a têmpera deste grande bispo, lê o que escreveu em sua Carta aos Fiéis de Corinto, quando, já preso, vislumbrou o local de seu fim, o Coliseu romano: “Deixai-me ser comida para as feras, pelas quais me é possível encontrar Deus. Sou trigo de Deus e serei moído pelos dentes das feras, para encontrar-me como pão puro de Cristo. Acariciai, antes, as feras, para que se tornem meu túmulo e não deixem sobrar nada de meu corpo, para que na minha morte não me torne peso para ninguém. Então, de fato, serei discípulo de Jesus Cristo, quando o mundo nem mais vir meu corpo. (...) Quando houver padecido, tornar-me-ei alforriado de Jesus Cristo e ressuscitarei nele. (...) Fogo e cruz, manadas de feras, quebraduras de ossos, esquartejamentos, trituração do corpo todo; os piores flagelos do diabo venham sobre mim, contanto que eu encontre a Jesus Cristo. (...) Então, começarei a ser discípulo do Senhor” (4.1-3).

Já encontraste alguém que tenha se expressado assim, com tal lucidez de alma, com um objetivo tão seguro e definitivo de vida e de morte? Talvez tenhamos tu e eu que responder não e admitir que são raras as pessoas que mantêm, permanentemente, tal linearidade de comportamento. O que se vê com freqüência é o ziguezaguear indeciso das pessoas durante a vida e próximo do fim.

Santo Inácio, cujo nome significa “nascido do fogo” (igne natus), tinha, como se costuma dizer, arroubos de profeta e parresia (coragem) de mártir. A Tradição o identificou como aquele menino que Jesus teria tomado nos braços, quando disse: “Deixai vir a mim as criancinhas, porque delas é o Reino dos céus” (Lc 18,16). Tanto foi seu amor por Cristo - “É a Ele que procuro”, “o meu amor crucificado”, “a boca sem mentiras do Pai” -que as feras, que destroçaram seu corpo, pouparam-lhe o coração, no qual se encontrou escrito, com veias, o nome JESUS.

Verdade ou piedosa lenda, assim foi a vida e o fim deste terceiro bispo de Antioquia, discípulo de São João Evangelista, indicado para o cargo por Pedro e Paulo. Foi numa de suas Cartas que, pela primeira vez, a denominação Católica (universal) foi aplicada à Igreja de Cristo. Foi um grande pastor em vida e um impávido mártir na hora da morte.

Suas últimas palavras, depois de condenado à arena pelo imperador Trajano, foram: “Eu te agradeço, ó Senhor, por me concederes esta possibilidade de provar perfeitamente o meu amor por ti, e de também ser, por teu amor, agrilhoado como teu apóstolo Paulo”.

À luz de sua vida e morte, talvez possamos tentar expressar qual seja a utopia da vida e da morte:

A utopia da vida é a de alcançar uma razão suprema, absoluta e definitiva, que unifique nossos caminhos e engrandeça nossas atitudes de forma intensa e total, apaixonada e incondicional, vivendo de coração aberto, sem medos invencíveis. A utopia da morte é a de confirmar e sacramentar tal utopia, aceitando-a, com serenidade, sem desespero, como coroa incorruptível e luminosa da fé que animou e norteou a vida.

Quem é religioso entende que esta utopia se ancora em Deus, senhor da vida e da morte. “Nele é que vivemos, nos movemos e existimos”(At 17,28). Ao mesmo tempo, porque vivemos em comunidade, não deixamos minimamente de ser dos outros. Adoradores do Criador, somos igualmente irmãos uns dos outros. O céu e a terra, a vida e a morte têm a mesma marca: o desejo insopitável da plenitude da vida, aqui, por Ele e com os outros, enquanto vivemos, e lá, com Ele e com todos, depois que morrermos.

Marchamos todos inexoravelmente para o desfecho da vida. Como já te disse acima, conhecemos a data de nosso nascimento. Ninguém conhece a data da própria morte. Celebramos muito a primeira. Tememos todos muito a segunda.

Com instintiva sabedoria, no entanto, nos acomodamos, na prática, ao drama de viver. Vamos perdendo as forças e as ilusões, vamos, pouco a pouco, embora relutantemente, aceitando a idéia de que estamos, no mundo, apenas de passagem.

Aliás, se pudéssemos, viveríamos sempre de frente para a vida e de costas para a morte. No entanto, é a vida que vai nos dando as costas e é a morte que vai se aproximando de nós, e tomando-nos, aos poucos, pela mão.

A questão madura e inevitável que, então, temos que enfrentar e à qual não podemos deixar de responder, é sobre como estamos vivendo e sobre como estamos morrendo. Que utopia vamos alimentando? Que chama sagrada vai nos iluminando? Que feras estamos dispostos a enfrentar, sem desespero? Que imperadores merecerão, finalmente, o testemunho de nossa fé? E em qual coliseu entraremos, no último dia, cantando?

Lembra-te, ó Homem, que ninguém quer deixar de viver e que são poucos os que se preparam para morrer. Mas vida e morte são realidades de um mesmo projeto, com idêntica utopia.

A vida é, na verdade, nossa maior riqueza e seu mistério, nosso mais apaixonante desafio. Teologicamente, dizemos que ela é sopro de Deus de inestimável valor, embora colocado em vasos frágeis. Amar a vida, a própria vida, e cuidar de todas as vidas, é honrar seu Criador. Menosprezá-la seria negar sua origem e transviar seu destino.

Por outro lado, a vida é um drama que começa com o aplaudido choro do nosso nascimento. Nas inconseqüências dos primeiros anos, vamos aprendendo que não estamos sozinhos, que nossos pais mandam em nós e que o melhor é obedecer-lhes para evitar castigos, desafeições e insuportáveis desajustes, que até Jesus experimentou, como evidencia o episódio de seu encontro no Templo, aos 12 anos.

Assim continuará a vida, entre a obediência aos que mandam e o desejo de mandar mais do que os outros, até que, finalmente, já na idade das sombras, voltamos a descobrir que ainda temos que obedecer, nem que seja a médicos, enfermeiros e gente mais cheia de vida, que poderão passar a cuidar de nós como se fôssemos crianças recém nascidas.

Mas, um dia, teremos que obedecer já não mais a pessoas, mas a uma realidade que sempre tentamos evitar: à morte. Dela partirá a última ordem: “Chega! É hora de partir!”. Entregaremos, então, aos que ficam a chave de nossa casa, num último ato de obediência. Eles fecharão nossos olhos e partiremos talvez, com certa relutância, para uma terra desconhecida.

Assim é a vida. Vivemos e morreremos obedecendo, como Jesus, que também viveu e morreu obedecendo. Nestas inevitáveis obediências, importante seria não viver ao léu e não morrer sem destino.

Vive, por isso, sonhando com a utopia de bem viver! Honra a vida e crê em teu Criador! Ele ama o que criou e nunca te desprezará. Ele quer que todos tenham vida e que tenhas vida em abundância. Por tua vida, Ele apostou a vida de seu Filho Unigênito. Não estás sozinho. Quando chegares aos anos derradeiros, não desanimes! Ele quer que sejas livre. Ele te fará livre, alforriado. Apenas te cobra obediência à utopia da vida e da morte. Não uma obediência cega, de quem tem medo de castigos e desafeições, mas a obediência de um homem livre, que reconhece sua glória e onipotência e seu infinito e incondicional amor por suas criaturas.

Viver, ó Homem, pode ser, sim, como disseram os gregos, uma tragédia. Morrer pode ser a maior frustração, a pior das tragédias. Mas Deus é o avalista da tragédia da vida e da morte, porque Ele é graça e misericórdia, salvação e glória, abraço de pai e vida sem fim.
Frei Neylor J. Tonin

Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/artigos/outubro_artigo.php acesso em 15 fev. 2009.

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