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domingo, 14 de junho de 2009

Lutar com Deus

Frei Neylor J. Tonin

Status quaestionis: A Bíblia é um tesouro de sabedoria e de humanidades. Conta uma grande história e muitas outras histórias menores com nome e endereço, exalta a epopéia de um povo e adora o Deus único e verdadeiro, não deixa de consolar os aflitos e de alimentar as esperanças dos anawin (os desconsiderados da sociedade), encoraja os amedrontados e aplaude os intimoratos, condena os ímpios e maus e abençoa os justos. E tem uma infinidade de histórias com a nossa cara, histórias que retratam os mais abscônditos sonhos e o modo peculiar de ser da pessoa humana daquele tempo, de hoje e de sempre.

Um dos grandes desejos dos homens bíblicos foi o de conhecer Deus, de tocá-lo, de tê-lo como hóspede de sua tenda e de, finalmente, ver seu rosto e saber seu nome. No fundo, queriam ter a certeza de que Deus existia, que não era apenas uma projeção do espírito humano atemorizado diante das forças do universo e da cara dura e fria da morte. Para ter essa certeza, não lhes sobrou outro caminho que o da luta. E eles não se negaram a lutar para ter certeza de que Deus existia e para ver sua face.

De relance, vejamos algumas histórias. A de Abraão, por exemplo, levanta uma grande interrogação sobre as incertezas da vida e a inescapabilidade da morte. Se quem morre não tem descendentes, como Abraão não tinha, o que sobrará dele senão a frustração de um fim que termina num nada? Diante deste medo, Abraão, ao pé do carvalho de Mambré, olhava para o céu, interrogando-se e suplicando pela ajuda do Deus "único e verdadeiro".

Para ele, o fato intransponível era Sara, sua esposa, bastante idosa, que não lhe podia dar um filho, que fosse o mantenedor e continuador de sua fortuna e história. Olhava por isso para o céu, ao mesmo tempo, confiante e temeroso, acreditando que algo poderia acontecer, embora não soubesse nem como nem quando, nem graças a quê e por quem.

Antes que Deus entrasse em cena, recorre ao expediente fácil e demasiadamente humano de garantir a continuação de sua memória, valendo-se dos serviços de sua escrava Agar. Mas Deus lhe garante que não será Ismael, o filho da escrava, seu herdeiro, mas o filho que sua legítima mulher lhe dará dentro de um ano. A legítima mulher, a velha Sara, escondida por detrás dos panos da tenda, não pode controlar o riso.

Na continuação desta história, há as figuras de seu filho Isaac e de seus dois netos, Esaú e Jacó, que disputam, com glutonice e mentiras, a bênção da primogenitura. Jacó mente duplamente e engana a cegueira de seu pai Isaac, fazendo-se passar por Esaú. Com este expediente, novamente fácil e demasiadamente humano, usurpa a bênção e se faz protagonista duma história que envolve Deus e suas promessas.

Dando um salto de 430 anos de exílio, a história dos descendentes de Abraão se defronta com um líder gago que é destinado por Deus a libertar o povo da escravidão no Egito. Moisés é arrancado do pastoreio tranqüilo dos rebanhos de seu sogro Jetro por uma voz que saía duma Sarça Ardente e que o desafiava a enfrentar o Faraó, seus cavalos e cavaleiros. Se já gaguejava antes, muito mais gaguejaria agora.

Poderíamos continuar lembrando as histórias de Saul, Davi, Judite, dos irmãos Macabeus e de tantos outros. De Paulo, Pedro, Estêvão já no Novo Testamento. Importante é recordar que o Deus bíblico sempre se apresenta, ao mesmo tempo, como graça poderosa que fala, atua e se revela e como um contendor do qual não se pode fugir. Estes dois aspectos - graça e luta - são marcas inegáveis e inconfundíveis de qualquer itinerário espiritual humano.

Na vida das pessoas e na história dos povos, Deus é acolhido, quando graça, com festas e danças; quando luta, no entanto, é temido e evitado. Contudo, é na luta, tanto quanto na graça, que Deus deixa suas marcas. É preciso, por isso, lutar com Ele, lutar física e espiritu-almente, com alma e corpo. É preciso ir criando e moldando, através da graça e da luta, o caráter de Deus em nós.

Pulemos para os dias de hoje, em que os faraós são outros, mas não menos cruéis e totalitários. As nossas dúvidas são as eternas dúvidas de sempre. Deus... onde está? Deus... onde se esconde? Em que tenda continua se fazendo hóspede e de que Sarça continua fa-lando?

Num mundo de sempre maiores facilidades, em que a única coisa difícil continua sendo amar e crer (além de sofrer), é preciso repropor o caráter de luta da vida espiritual e religiosa. Deus não se contenta com pouco nem com a lógica das dúvidas humanas, assim como abomina a execução apenas ritual de compromissos religiosos que levam as pessoas à igreja, mas as exime da luta em favor do projeto maior da história. Ter fé em Deus comporta lutar dolorosamente com o invisível e obedecer a ordens aparentemente absurdas.

Não basta, por isso, assistir a missas e rezar o terço, dar esmolas e fazer jejuns, derramar-se em louvores e danças de exultação. Tudo isto poderá ser importante e necessário, mas é, segundo os caminhos bíblicos, insuficiente. É preciso mais. É preciso agarrar Deus, como Jacó, e lutar com Ele até "o romper da aurora". É preciso buscar conhecer seu rosto e nome, como Moisés, mesmo não o vendo nem sabendo como se chama. É preciso estar disposto a sacrificar o filho mais querido, como Abraão, mesmo que isto custe a possível morte de nossas esperanças.

Viver para Deus e com Deus é uma luta, bonita e crucificante, da qual sairemos sempre como dominados e, só finalmente, como vencedores. Nosso itinerário com Ele, será, num primeiro momento, de festa e terá o doce sabor do mel, encherá de gozo o espírito e de leveza nosso interior. Enquanto só acontecer isso, enquanto nossa relação com Ele não se fizer luta, dolorosa e crucificada, ainda não podemos dizer que temos uma fé adulta e ma-dura.

Deus chega a nós como graça, pois sua natureza não pode ser outra coisa: Ele é graça, so-mente graça, sempre e unicamente e nada mais do que graça. Esta graça, aliás, tem até um nome histórico: Jesus. E nós, cheios da graça de Deus, chegamos a Ele pelas graças da fé, do amor, da luta e da cruz.

É verdade que há mil formas de chegar a Deus, mas a forma mais sentida e menos enganosa é a da luta e da cruz. Uma pessoa só tem sua fé verdadeiramente testada na luta por Deus, quando subir e permanecer no alto de uma cruz. Enquanto reza e dança, enquanto segue o Cristo da doutrina e o aplaude como miraculoso salvador, ainda não é inegavelmente de Deus. De Deus ela é quando faz um ato de fé em seu Senhor crucificado.

A esta altura, devemos elucidar um equívoco ocorrente na espiritualidade: não é a luta que, pura e simplesmente, nos salva. Ela é, sem dúvida, engrandecedora do ser humano, mas não o leva para além dos merecidos aplausos que granjeia. Chamados à luta, temos que admitir que somos mais do que os esforços que fazemos.

Pelo contrário, os esforços são até uma parte ínfima de nossas vidas. Comparada a um rio, a vida vai nos levando em suas águas, mesmo que tenhamos que nadar bravamente. A força do rio, mais do que nossos esforços, vai nos levando correnteza abaixo em direção ao gran-de mar. Mas não se pode deixar de bracejar, evitando o risco de afogamento prematuro.

Religiosamente, a compreensão que se tem da vida espiritual passa necessariamente pela luta. Depois da queda original, não se pode chegar à perfeição se não mediante luta pelo bem e pela verdade. E, ainda mais, por causa da fragilidade humana, necessitamos de um mediador que não sejamos nós mesmos. Nosso destino escapa ao poder finito de nossas mãos e nunca chegaremos para além dos contrafortes da morte senão pela gratuidade de um amor onipotente que nos ama infinitamente e que santifica e resgata nosso tempo e enve-lhecimento inevitável.

A falta de luta na vida religiosa apresenta dois tristes sintomas: o de seu agüamento e o da revitalização do demônio. É isto que se constata em pessoas sem musculatura espiritual. Mas a luta pela grandeza religiosa não pode erradamente ser apenas moral, ou seja, não se pode, por princípio, viver em função de demônios a serem vencidos a ferro e fogo. A luta humana é com Deus e por Deus. É um ato de envolvimento com o divino e de radical iden-tificação com Ele. Caso contrário, dar-se-á ao diabo um status que não tem e cometer-se-á, por ignorância, contra Deus, uma ofensa de insanáveis danos.

A luta, de que falamos, é também moral, sendo essencialmente religiosa e relacional. É de amor a Deus e por Deus. Deus é nosso campo de batalha e o guerreiro que temos de enfren-tar até o romper da aurora. Como Jacó, sairemos certamente mancos desta luta. Mancos, mas salvos; machucados, mas engrandecidos e agraciados.

Frei Neylor J. Tonin
Irmão menor e pecador

Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/artigos/fevereiro_artigo.php acesso em 15 fev. 2009.

Ilustração: REMBRANDT. Jacó Lutando com o anjo. 1659.

2 comentários:

  1. Como sempre, e conheço várias obras desse Frei, fala com muita propriedade. Só não podemos esquecer que encontraremos Deus principalmente no outro, no irmão. Penso que essa é a grande luta que deveremos travar. Amar o outro incondicionalmente nos levará, com certeza, à face de Deus.

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  2. Conheço Fr. Neylor pessoalmente. Ele reside no convento de Santo Antônio, no Rio de Janeiro. Pertence à Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil.

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