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quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A evolução das espécies: aspectos religiosos

Frei Luís Leitão - (luisleitao@promapa.org.br): Frei Luis Leitão pertence a Província Capuchinha Nossa Senhora do Carmo. Atualmente reside no Pós-Noviciado de Filosofia e também é o vice-diretor geral do IESMA(Instituto de Estudos Superiores do Maranhão)
Comemoram-se neste ano 150 anos da obra clássica de Darwin “A Origem das Espécies” (1859). Nesta obra, Darwin apresenta ao mundo um novo modo de conceber a existência dos seres viventes, dentre os quais o homem. Ora, se com Darwin, a partir do século XIX, o cientista passou a afirmar a origem do homem como um processo evolutivo de ancestrais símios, o crente desde mais ou menos 1.800 a.C até o século XXI, afirma a origem do homem como um ato voluntário da criação divina. Observa-se, com isto, que existe aqui um confronto inevitável entre ciência e fé. Por esta razão, este artigo intitula-se: “A evolução das espécies: aspectos religiosos”.

Pois bem, se a nossa arena é religiosa ou teológica, cabe, então, clarear de início isto que vou dizer: analisar a “Origem das Espécies”, a partir da vertente religiosa, significa ter como base central de referência do discurso e da discussão o Criador e não o criado; o inatingível e invisível da Revelação e não o fóssil tangível e visível da paleontologia, enfim, o princípio ontológico, que é Deus como causa incausada e fonte do ser, e não o fenômeno, que é o que nos aparece ou se nos apresenta na mutabilidade do mundo em devir.

Dito isto, façamos agora a seguinte pergunta: além do discurso científico, qual é a razão de ser do discurso religioso no debate sobre a Teoria da Evolução das Espécies? Em busca de uma resposta, devido à inevitabilidade do confronto entre ciência e fé, pode-se dar com certeza esta: está no fato de a teoria da evolução ter provocado uma revolução epistemológica na antropologia[1], isto é, o homem passou a ser visto e compreendido não mais como obra da criação divina na sua origem, mas sim como resultado original de um processo evolutivo. Processo evolutivo este que aponta como base ancestral do homem a velha história do macaco. Em termos críticos percebe-se nesta colocação do evolucionismo darwiniano uma concepção de homem de tendências materializantes[2]. Por isso, aos cientistas que se encontram diante de grande material de fósseis ditos humanos, o senso religioso analisa e pergunta. A análise é esta: de acordo com o material fóssil a tese é de que a etapa evolutiva da espécie humana começou com os símios, formando-se o tipo antropos, que evoluiu na direção do neandertalense até o homo sapiens, e cujo processo evolutivo devia ser lento regresso dos caracteres simiescos e progressão dos elementos “homo sapiens”[3]. Se o é, agora vem a pergunta: então “onde acaba o animal, e onde começa o homem?”[4]. Não tenho dúvidas, esta é uma pergunta difícil de a teoria da evolução das espécies responder, porque seu postulado interpretativo da origem dos seres viventes é mecanicista. Além disso, a documentação fóssil dos antepassados do homem – o macaco – é por demais fragmentária, o que nos leva a afirmar que as conclusões científicas neste setor estão ainda no campo das conjecturas[5]. Categoricamente, a teoria da evolução da origem das espécies nunca foi efetivamente comprovada[6]. E nunca o foi, porque a resposta mais difícil de ser dada está no perguntar-se pelo ‘“como se origina uma espécie”’[7]. Se dar uma resposta ao como se origina a espécie é a mais difícil do que responder ao onde apareceu e ao quando se formou, porque os dados atuais apontam para a África em torno de 150.000 anos[8], com muito mais razão difícil é responder ao como da origem biológica do homem. Isto permanece ainda totalmente na sombra e no hipotético[9]. Ora, esta lacuna deixada pela ciência, mostra-nos, pois, que há uma brecha para o discurso religioso, cuja visão evolutiva transcende os buracos cavados no chão pela pesquisa importante e necessária da paleontologia. Neste sentido, a impostação religiosa no que concerne à Origem das Espécies põe em evidência que “a fé deve considerar como indispensável a criação de ao menos um ser determinado: o homem” Por que? Porque “se o homem for apenas um produto da evolução, também o espírito é um efeito do acaso. Ora, se o espírito se originou por evolução – e, portanto, é um efeito do acaso –, então a matéria é a origem primeira e suficiente de tudo o mais. E, se isto é assim, então Deus, Criador e criação desaparecem por si mesmos”[10]. Daí, pois, o motivo pelo qual ao menos um ser determinado, no caso o homem, o discurso religioso não prescinde de defendê-lo como obra da criação e nunca como produto ascendente da seleção natural. Vê-se que o caminho científico e natural, pelo qual se tenta uma solução do problema da origem da espécie humana, desembocou no teológico. Por isso, é preciso dizer com certeza e clareza absoluta que o evolucionismo, se admitido relativamente à espécie humana, só pode referir-se ao corpo, uma vez que a alma se origina por criação imediata. Assim, não se poderá dizer o homem é resultado de evolução ascendente, mas só o corpo humano possivelmente é resultado da evolução ascendente. De fato, Pio XII na encíclica Humani Generis diz que “não se pode admitir a hipótese de evolucionismo a respeito das almas humanas”[11]. Esta convicção religiosa é profundamente válida e inegável, porque “cada homem é mais do que produto da massa hereditária e do ambiente, nenhum resulta só de fatores intra-mundanos que podem ser calculados; o mistério da criação envolve a cada um de nós”[12].

Dado, pois, que “o homem, na sua estrutura humana, um ser composto, ontologicamente considerado, é algo misterioso para as limitações acanhadas da razão finita que o observa”[13], há de dizer que a figura do homo sapiens sapiens (que é o homem atual) se apresenta – nos traços hoje disponíveis – com características tais que impõem à ciência mesma interrogações ainda mais problemáticas das de suas origens biológicas. Por exemplo, nesta nova espécie (homo sapiens sapiens) a “mente” se impõe como uma verdadeira “novidade”. TH. Dobzhansky, pesquisador e pensador que deu contribuições fundamentais ao tema da evolução, reconhece: ‘“Sem dúvida a mente humana separa de modo claro a nossa espécie dos animais não humanos. (...). A grandeza da diferença é uma diferença de tipo, não de grau. Por causa desta diferença primária a humanidade se torna um produto extraordinário e único da evolução biológica”[14].

Esta novidade do homo sapiens sapiens comunica que sua estrutura biológica é uma evidente obra prima intrinsecamente vinculada a uma componente não de ordem material, mas estreitamente espiritual. Componente esta que exercita a função mente, raiz comum das duas faculdades intelecto e vontade. Há uma estreitíssima relação mente-corpo, relação que implica dois aspectos: uma de ordem psicológica entre inteligência, vontade e livre-arbítrio e funções neurofisiológicas e fisiológicas do corpo; e uma de ordem metafísica na relação alma-corpo. Observam-se aqui forças não materiais, mas espirituais, das quais o cérebro não é consciente, mas o é a pessoa. E isto porque, segundo C.M. Streeter ao expor uma visão antropológica das neurociências, afirma: ‘“O cérebro não é a mente. O cérebro é a infra-estrutura fisiológica da mente”’[15].

Diante destas colocações, constata-se mais e mais que mente e consciência são dois fatores que separam nitidamente a espécie homo sapiens do resto do mundo animal. Mente, energia que pensa, reflete e se exprime através de uma linguagem compreensível, imensamente desenvolvida e extraordinariamente guiada pela atividade de milhões de neurônios que operam ordenadamente sem paragem no cérebro. E consciência, reflexão que examina o que a mente exprime para, a partir daí, julgar o valor: bem ou mal. No debate, pois, da Teoria da Evolução, a visão religiosa com sua inteligência da fé afirma e reafirma que o ser da espécie humana deve ser visto também a partir de um nível muito superior ao estritamente biológico, o qual não poderá nunca fornecer uma explicação convincente[16]. E sobre isto, convém dizer que, se para Darwin o mecanismo primário que determina a transformação são as mutações puramente genéticas casuais, e as que garantem uma melhor adaptação ao ambiente sobrevivem, há de dizer que os primeiros problemas para Darwin chegam com a descoberta das leis sobre a hereditariedade do sacerdote G.J Mendel (1822-84) e a sucessiva redescoberta que encaminha a genética moderna com a descoberta do DNA, uma vez que se chegará à conclusão de que a transmissão hereditária dos caracteres ocorre independentemente do ambiente e do corpo do indivíduo e se desdobra em base a leis precisas, não casuais[17]. Tal descoberta científica dá credibilidade à visão religiosa para continuar a afirmar que a espécie humana não é soma do acaso, mas obra precisa proveniente do intelecto criador. E aqui, deve-se saber que a posição religiosa não é anticientífica, mas transcientífica[18].

Por isso, “seria tolo e falso declarar a teoria da evolução como um produto da fé, embora também a fé tenha contribuído para que se desenvolvesse aquele horizonte de pensamento no qual se podia originar o problema da evolução. Mais tolo ainda seria considerar a fé como uma espécie de ilustração da teoria da evolução, fazendo que esta seja confirmada por aquela. O plano das perguntas e respostas da fé é absolutamente outro”[19].

Hoje a Igreja reconhece a autonomia dos pesquisadores no caminho científico para escolher a teoria que melhor esclareça o fenômeno da evolução[20]. E isto é muito pacífico porque, a batalha com Darwin já foi superada, uma vez que o postulado de seleção natural e a sobrevivência do mais forte recebem um contexto novo e atual. Com efeito, “ainda que o monge agostiniano Mendel nunca tenha falado de ‘genes’, ele se encontra na origem de uma nova maneira de ver o mundo, tanto em sua evolução quanto em sua continuidade”[21].

Por causa disto, “hoje não discutimos mais se Darwin tinha ou não tinha razão. Pelo contrário, hoje gostaríamos de saber o que a teoria da evolução significa para a fé e para a teologia. Que significa esta nova visão para uma visão crente do cosmo, da vida e do homem?”[22]. Se é importante na seleção natural a sobrevivência do mais forte, o que tem que ver esta teoria da evolução com Deus? Pois a salvação não se dirige acima de tudo aos derrotados?[23]. “Como se entende propriamente o mundo, se o concebemos de modo evolutivo?”.

Haja vista isto, concluo com o que diz o teólogo Joseph Ratzinger, atual Bento XVI: “A teoria da evolução não elimina a fé; ela tampouco a confirma. Contudo, ela a provoca a que se entenda mais profundamente a si mesma, ajudando assim o homem a entender-se a si mesmo e a tornar-se mais e mais aquilo que é: o ser que deve dizer eternamente tu a Deus”[24].
  1. Cf. HARING, hermann e THEOBALDO, Christoph. Evolução e fé. Concilium (fasc. 284-288). Petrópolis: Vozes, 2000. p.7.
  2. Cf. CATÃO, Bernardo. O Evolucionismo. Conceitos em Confronto com a Teologia. REB, vol. 21, fasc. 1. Petrópolis: Vozes, 1961. p.4.
  3. KOSER, Constantino. Avatares do Evolucionismo na Origem da Espécie Humana. REB, vol. 19, fasc.3. Petrópolis: Vozes, 1959. p.640.
  4. LOPES, Paulo. Poligenismo e Antropologia Teológica. REB, vol.21, fasc.1, 1961. p.29.
  5. LOPES, Paulo. Poligenismo e Antropologia Teológica. p.26.
  6. Cf. HARING, Hermann e THEOBALDO, Christoph. Evolução e fé. Concilium (fasc. 284-288), 2000. p.17.
  7. SERRA, Angelo. A 150 anni dall’origine delle specie di Darwin. La civiltà cattolica, vol.1, anno 160, quaderni 3805-3810. Roma, 2009.p.350.
  8. SERRA, Angelo. Le origini biologiche dell’uomo. La civiltà cattolica. Vol.4, quaderno 3559. Roma, 1998.p. 29.
  9. Cf. SERRA, Angelo. A 150 anni dall’origine delle specie di Darwin. p.352.
  10. RATZINGER, Joseph. Dogma e Anunciação. São Paulo: Loyola, 1977. p.114.
  11. KOSER, Constantino. A transmissão do pecado original e a origem da espécie humana. REB, vol. 21, fasc. 1. Petrópolis: Vozes, 1961. p.40
  12. RATZINGER, Joseph. Dogma e Anunciação. p.114.
  13. LOPES, Paulo. Poligenismo e Antropologia Teológica. p.24.
  14. Cf. SERRA, Angelo. Le origini biologiche dell’uomo. p.30.
  15. [15] Cf. SERRA, Angelo. A 150 anni dall’origine delle specie di Darwin. p.356.357.
  16. [16] Cf. SERRA, Angelo. A 150 anni dall’origine delle specie di Darwin. p.38.359.
  17. [17] Cf. RESPINTI, Marco. Processo a Darwin (resenha bibliográfica). La civiltà cattolica, vol.3, anno 159, quaderni 3793-3798. Roma, 2008.p.346.
  18. [18] Cf. LOPES, Paulo. Poligenismo e Antropologia Teológica. p.38.
  19. [19] RATZINGER, Joseph. Dogma e Anunciação. p.117.
  20. [20] Cf. MICHOLLET, Bernard. A evolução e o conceito de ser humano. Ensaio de interpretação de imago Dei. Concilium (fasc. 284-288). Petrópolis: Vozes, 2000. p.98.
  21. [21] MOSER, Antônio. Biotecnologia e bioética. Para onde vamos? Petrópolis: Vozes, 2004.p. 67.
  22. [22] Cf. HARING, hermann e THEOBALDO, Christoph. Evolução e fé. p.7.
  23. [23] IERSEL, Bas Van. Evolução e Bíblia. Dois códigos, duas mensagens. Concilium (fasc. 284-288). Petrópolis: Vozes, 2000. p.134.
  24. [24] RATZINGER, Joseph. Dogma e Anunciação. p.117.120.
Extraído de http://www.promapa.org.br/2006/index.php?pag=artigos&exibartigo=152 acesso em 21 nov. 2009.

Foto: Statue of Charles Darwin in the Natural History Museum, London / statue was created by Sir Joseph Boehm. 1885. Fotógrafo Patche99z, 2009. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Charles_Darwin_statue_5661r.jpg acesso em 21 nov. 2009.

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