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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Os mistérios de Jesus: as palavras dos primeiros cristãos sobre os enigmas da fé

Sob o título "Seguendo Gesù" [Seguindo Jesus], Manlio SimonettiEmanuela Prinzivalli recolhem com precisão os principais textos da literatura cristã das origens. O primeiro volume, que será publicado nesta semana na Itália, compreende a chamada Didaquê, a Primeira Carta de Clemente aos Coríntios e as Cartas de Inácio de Antioquia (Fondazione Valla, Mondadori, p.XXIII-630). O segundo volume, a ser publicado em breve, organizado pelos mesmos estudiosos, reunirá as Cartas de Policarpo, o Pastor de Erma e a Carta de Barnabás.

A análise é do ensaísta e crítico literário italiano Pietro Citati, considerado um dos mais respeitados literatos contemporâneos, em artigo para o jornal La Repubblica, 05-10-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Estamos nas primeiras décadas do Cristianismo: entre os anos 60-70 e 120. Os cristãos ainda não assumiram o seu nome, embora Jesus seja o fundamento da sua vida. Entre os escritores e leitores desses textos, alguns encontraram os discípulos diretos do Senhor: muitos ouviram suas palavras por meio de uma tradição oral. As comunidades cristãs ainda são informes e incipientes, sem estruturas enraizadas e com traços fortemente carismáticos.

Tanto os apóstolos (que não devem ser confundidos com os 12) quanto os profetas, assim como os mestres, são missionários itinerantes, como séculos depois irá ocorrer também entre os Maniqueus. Eles não têm casa nem igreja: podem parar em um lugar só por dois dias e, se permanecerem por mais tempo, são considerados "falsos profetas". Os ritos são incertos: ainda não se estabeleceu quem deve ser o ministro do batismo. Talvez todos os fiéis podem batizar. Essa situação muito fluida tende a se enrijecer: nos anos de Inácio, forma-se uma hierarquia de três níveis, mais estrita e compacta do que a de Paulo: bispos, presbíteros, diáconos.

Lendo esses textos arcaicos, a nossa primeira sensação é de percorrer o cristianismo originário, que respira com o mesmo respiro de Jesus e percorre as suas normas. Na realidade, as coisas são diferentes. Muitas vezes, o que falta ao primeiro cristianismo é, em parte, justamente, o cristianismo. Os nossos autores não conhecem os Evangelhos sinóticos, que ainda não haviam sido escritos ou que estavam sendo escritos naqueles mesmos anos, ou que ainda não haviam adquirido autoridade. Eles conhecem passagens paralelas, que provêm de uma coleção parassinótica oral ou escrita. E alguns compreendem perfeitamente as Cartas de Paulo. Clemente possui a filosofia judaico-helênica, que depois será esquecida ou ignorada pelas comunidades cristãs. Na sua carta, comove principalmente a lembrança do Antigo Testamento: texto único e capital, embora suas passagens e suas figuras sejam interpretadas como antecipações de Jesus.

Especialmente na Didaquê, que ainda não tem um aspecto narrativo, falta a figura de Jesus, que prega, caminha, fala secretamente aos seus discípulos. No mesmo texto, há uma falta ainda mais grave: não há traços do corpo e do sangue de Cristo e da sua morte como redenção, quase como se Paulo nunca tivesse pregado. Jesus ainda não se tornou Xristos: isto é, o Messias, termos essencial nos Evangelhos. Ele não é a salvação, mas o caminho que leva à salvação: ele nos conduz a Deus, mas não é a meta. "Graças a ele, fixamos o olhar nas alturas dos céus, graças a ele observamos como em um espelho o rosto imaculado e altíssimo de Deus".

Mas, pouco a pouco, o sangue de Jesus Cristo torna-se o centro da salvação. E, nos primeiros anos do século XX, Inácio escreve estas palavras belíssimas: "Espera aquele que está acima do mundo, sem tempo, invisível por nós visível, impalpável, impassível por nós passível, aquele que por primeiro suportou toda espécie de sofrimento". Deus cai na sombra, a criação passa para o segundo plano. E Jesus cresce e avança na cena, com o seu corpo ensanguentado e a sua morte, até se tornar aquele que foi e será para sempre: o Cristo de Paulo e de João.

Quem fala, na Primeira Carta aos Coríntios de Clemente, é a Igreja de Roma: a comunidade inteira e vasta dos fiéis, que se dirige com uma só voz aos cristãos de Corinto: "A Igreja de Deus que vive como estrangeira em Roma à Igreja de Deus que vive estrangeira em Corinto". Tanto uma quanto a outra são duplamente estrangeiras: com relação ao mundo, porque os cristãos são estrangeiros com relação ao mundo, e diante do céu, porque a nossa vida sobre esta terra é provisória.

Tanto a Igreja de Corinto, à qual Clemente se dirige, quanto as Igrejas da Ásia Menor, às quais Inácio se dirige, são presas da discórdia: as comunidades cristãs repetem a mesma situação dos grupos judeus, que nas gerações passadas haviam sido sacudidas por ódios ferozes. A condição das Igrejas parece terrível: discórdia, revolta, tumultos, ciúmes, rixa, inveja, perseguições, desordens "funestas e sacrílegas".

Clemente e Inácio remetem a episódios da Bíblia: o crime de Caim, o ciúmes de Esaú contra Jacó, o dos irmãos contra José, de Saul contra Davi. Não sabemos exatamente qual é a razão dessas discórdias. No caso das Cartas de Inácio, é claro que as comunidades médio-orientais são, em parte, dominadas por grupos docetistas, que negam a morte de Cristo encarnado sobre a cruz.
Em geral, as causas são menos precisas: as autoridades e as hierarquias tradicionais das Igrejas são postas em discussão por contestadores que provêm de baixo (às vezes mulheres). "Insurgiram-se – proclamava Clemente – os sem honra contra os honrados, os obscuros contra os ilustres, os tolos contra os sensatos, os jovens contra os anciãos... Todos abandonaram o temor de Deus".

Contra essa condição de cisma e de dissídio, Clemente e Inácio recomendam, quase com as mesmas palavras, a unidade, a concórdia, a paz nas comunidades cristãs. "Devemos fazer ordenadamente tudo o que o Senhor concordou realizar nos tempos estabelecidos". Como a Igreja está unida com Jesus Cristo, e Jesus Cristo com o Pai, assim todos os fiéis devem estar unidos com o bispo. "Vós não deveis fazer nada sem o bispo e os presbíteros. Tudo seja feito em comum: uma só oração, uma só invocação, uma só intenção, uma só esperança no amor e na alegria irrepreensível que é de Jesus Cristo".

Como na Primeira Carta aos Coríntios de Paulo, tudo se cumpre e se liberta no amor: agape. "O amor nos liga a Deus: o amor tudo suporta, tudo tolera: o amor não tem divisões, o amor não cria discórdias, o amor tudo cumpre na concórdia... Vede, ó diletos, como é grande e maravilhoso o amor, e da sua perfeição não há explicação". Dá uma diferença com Paulo, no qual a perfeição do amor era claramente explicada: ele é mais excelso do que a esperança e a caridade e jamais tem fim. Aqui, em Clemente, o amor representa a culminação da existência cristã, justamente porque é uma condição inexplicável e inefável.

Bispo de Antioquia entre 110 e 120, Inácio foi preso pela autoridade romana, colocado em viagem sob escolta e levado a Roma, onde deveria ser jogado às feras do anfiteatro. A viagem foi lenta: em cada etapa, mensageiros das comunidades cristãs da Ásia Menor lhe prestavam homenagem, enquanto ele escrevia cartas, nas quais ressoava a tradição paulina. O tema principal, grandioso e atroz, é o do martírio. Inácio não quer, sob nenhum preço, por nenhuma razão, ser libertado das correntes e da condenação. Só imitando Jesus, só sofrendo a morte como Jesus na cruz, ele se tornará plenamente cristão. A sua morte será como o pôr-do-sol: mas esse ocaso-morte se inverte na ressurreição em Deus.

Com uma tremenda autoferocidade, Inácio chega ao ponto de dizer que se as feras não quisessem lhe devorar, ele "as obrigaria a força". "Fogo e cruz, confrontos com as feras, lacerações, esquartejamentos, dispersão de ossos, mutilação de membros, trituração – contanto que eu possa alcançar a Jesus Cristo". No anfiteatro, as garras das feras cruéis o dilaceram, transformando-o em pão puro.

O outro tema de Inácio é o do silêncio de Deus e da descida escondida do Redentor. Essa descida conhece três etapas: a virgindade de Maria, o parto de Maria, a morte do Senhor. As três etapas são a suprema manifestação de Deus, que fala sobretudo quando cala. Satanás e os príncipes deste mundo ignoram o silêncio de Deus. Se queremos nos chamar cristãos, devemos ouvir tanto as palavras audíveis dos Evangelhos quanto as palavras escondidas e silenciosas do Senhor, nas quais ele nos revela todos os mistérios de Cristo, todos os enigmas do universo.

Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=37009 acesso em 6 out. 2010.
Ilustração: Orante (particolare). Roma : Catacombe di Priscilla, Cubicolo della Velatio, metade do séc. III. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Orante_(particolare),_catacombe_di_priscilla,_cubicolo_della_velatio,_roma_(met%C3%A0_III_secolo).jpg acesso em 6 out. 2010.

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