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domingo, 3 de abril de 2011

Francisco e Clara, Clara e Francisco e São Damião

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Continuamos a percorrer as páginas do  livro  Chiara di Assisi. Un silenzio che grida, de Chiara Giovanna Cremaschi.  Pensamos nas clarissas, pensamos em todos os que se interessam por Clara. Neste mês de março queremos refletir sobre dois episódios singelos e belos ligados ao Mosteiro de São Damiao: a  cura de Frei Estêvão e o sermão dito das Cinzas  (p. 80-85). Os dois nos falam de como eram os relacionamentos entre Francisco e os seus irmãos e Clara e suas irmãs.  Lembramos que não se trata de uma tradução ipsis verbis, mas de uma adaptação.

1. No transcorrer dos anos, a mediação de Francisco em São Damião se torna menos visível. As irmãs vão descobrindo o caminho que vai sendo construído no interior dos muros, por meio  dos relacionamentos entre essas mulheres  que  foram chamadas a viver a aventura evangélica nesse limitado espaço,  ao longo de cada dia. Há uma reciprocidade nos relacionamentos entre Francisco e Clara. Percebemos que se recorre a Clara devido a dificuldades experimentadas pelos frades. Um certo Frei Estêvão fora  acometido de insânia. Não se pode definir do que realmente se tratava: uma inesperada loucura, depressão ou outra doença psíquica?  Tratava-se de  uma pessoa doente que causava dificuldades para a vida fraterna.


2. Francisco mandou o irmão ao mosteiro de São  Damião  para que Clara traçasse sobre ele o sinal da cruz.  O carisma de cura de Clara transpirara para além dos muros de São Damião e Francisco não hesitou em mandar seu irmão a Clara. A atitude do Poverello  deixa transparecer a reciprocidade da ajuda  nas coisas desse  cotidiano, nem sempre idílico e fácil.  Em nosso caso, o doente chega acompanhado por  irmãos ou, quem sabe,  meio fortemente preso em suas mãos e é colocado diante dessa mulher serena e harmoniosamente livre no Senhor.  A testemunha do Processo de Canonização diz que Frei Estêvão foi conduzido até o lugar onde a santa madre costumava rezar.  Para além das conjecturas a respeito do ponto exato em que se achava, Frei Estêvão, devido à dificuldade de  estabelecer a planta original de São Damião, temos que pensar na capela, mas na parte das irmãs, ou mesmo no oratório.  Quando as irmãs no Processo  falam do lugar pensam-no conhecido para quem era familiar a disposição da casa.  Por isso, não dão maiores pormenores.


3. Clara traça, como de hábito, o sinal da cruz, obedecendo neste caso ao pedido explícito de Francisco.  Imediatamente, Frei Estêvão se acalma e dorme  ali  naquele mesmo lugar.  Não deve causar estranheza que uma pessoa venha a dormir num ambiente reservado à oração.  Na Idade Média havia o costume de se levar a própria cama para a igreja  a fim de que a pessoa morresse num lugar sagrado.  Depois que ele acordou deram-lhe alguma coisa para comer. Pode ser que anteriormente ele rejeitasse a comida ou simplesmente esta observação  exprime a delicadeza com a qual se cuidou do doente depois de sua cura. O pormenor da comida lembra o episódio ocorrido com a filha de Jairo, curada por Jesus. O mestre pede que deem de comer à menina  (Mc 5, 43).  Encontramo-nos diante de uma concretização amorosa na tradução em gestos palpáveis da observância do Evangelho.  A testemunha narra brevemente que Frei Estêvão foi embora  curado (libertado)  porque a cura é liberdade dos grilhões que  o impediam de viver em plenitude e de seguir o Senhor com as energias físicas e espirituais. A irmã  que dá o testemunho faz questão de dizer que ele foi embora seguindo o seu caminho. Uma anotação singela que tira do relato o cunho de coisa enfeitada e o mostra como sendo o resultado de um gesto de amor.

4. O relacionamento com os frades  não é alimentado por discursos e palavras, mas por  uma fé que tudo espera de Deus e que coloca a mediação no seu lugar de mero instrumento, sem nenhuma exaltação desmedida do mediador. Clara se limita a traçar a cruz deixando  agir aquele que tudo pode. Feito o gesto, ela certamente se retira no intuito de rezar por este irmão  que ficará para sempre marcado  por esta experiência da bondade de Deus, louvando a Deus pelo dom dado a Clara. Tudo é envolvido pela discrição. Somente pela necessidade de alguém ter que contar o que se passou com uma mulher de vida escondido é que levou a irmã a narrar o fato no Processo. Fica claro a ideia que o Amor se revela em sua serva. O estilo do relato, numa época de gostava do milagre como elemento mais importante da santidade, manifesta a profundidade da comunhão com Cristo e dá sentido a toda realidade.  Mostra também essa discrição  a pedagogia de Clara que ficava aos pés de Jesus como Maria de Betânia.

5. Agora examinemos o episódio da pregação das cinzas. No Memorial do desejo da alma ( esse o título exato  da fonte biográfica conhecida como 2Celano)  se diz que a presença de Francisco se tornava menos intensa junto das irmãs,  Numa determinada ocasião, ele aparece no mosteiro.  Celano afirma que  Francisco recebe o pedido de seu vigário para que explicasse a Palavra de Deus às irmãs.  Vencido pela insistência ele concedeu. Segundo o biógrafo foi Frei Elias que insistiu no pedido.  No decorrer do relato, Tomás de Celano lembra que Francisco havia decidido ganhar certa distância dos mosteiros femininos. Mas o hagiógrafo faz questão de mostrar que o relacionamento da ordem minorítica com São Damião era diferente. O relacionamento de Francisco com as irmãs de São Damião não se limita  a uma mera visita, mas o da oferta do dom da  alimentação espiritual  que caracteriza a mútua ajuda.  Tendo-se reunido as senhoras, como de costume para ouvir a palavra de Deus ( cf. Jo 8,47), mas também não menos para ver o pai, ele, depois de ter elevado os olhos ao céu, onde sempre tinha o coração, começou a rezar a Cristo. Depois, manda que seja trazida cinza, com a qual fez um círculo no pavimento ao seu redor, impondo o resto sobre a própria cabeça. Ao verem elas, o bem-aventurado pai dentro do círculo de cinza permanecer em silêncio, brota não pequena estupefação  nos corações delas.  De repente, o santo se levanta, e estando elas atônitas recita no lugar de sermão  o Miserere mei Deus (cf. Sl 50,3). Tendo-o terminando dirigiu-se imediatamente para fora  (2Celano 207).

6. O texto  nos leva a compreender  que Francisco, no começo não queria fazer pregação para as irmãs e depois é voto vencido, mas se limita a improvisar uma muda exortação.  Essa atitude do Poverello está em plena sintonia com sua típicas atitudes:  o de representar com gestos, com a  mímica de toda a pessoa, a mensagem a ser transmitida.  O episódio se apresenta, pois, com todas as características de autenticidade. Queremos olhar com atenção as considerações do Celanense.  Estamos diante de uma dramatização essencial da vida de penitência: ponto de partida para o caminho dos irmãos e das irmãs e que deveria continuar atuante em toda a existência terrena.  Francisco parece carregar cinza, elemento fácil de ser encontrado  no caminho porque  as comidas eram cozinhadas pelo fogo vivo improvisado ao longo das estradas.  Espalha cinzas em sua própria cabeça  como se costuma fazer no começo da quaresma.  Esse gesto estava em total consonância com o caminho dos irmãos e das irmãs que queriam fazer penitência. Francisco tem consciência de ser pecador. Nada tinha de próprio a não ser os vícios e os pecados, como dizia.  O silêncio que se seguiu à aspersão das cinzas  não foi um espaço vazio ou embaraçante, como parece deixar transparecer Celano, mas momento de interiorização. Através desse modo de mimar,  Francisco torna palpável o abaixamento de Cristo, de sua vida que culminou na cruz.  Assim, Clara viu o seu esposo no agir do Poverello e com admirável síntese haverá de exprimi-lo no Testamento:  “O Filho de Deus fez-se para nós o Caminho, que nosso bem-aventurado pai Francisco, que o amou e seguiu de verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e  exemplo” ( Test. Clara  5).

7. Francisco conclui sua pregação muda com a recitação do salmo 50. Sabemos que o salmo em questão é privilegiadamente usado pela liturgia penitencial,  e constitui uma pérola do saltério.  Canta a misericórdia de Deus  dada a quem confessa seu pecado, até o dom do coração novo e de um espírito generoso, capaz de anunciar aos irmãos e às irmãs o nome de Deus, as maravilhas de seu amor, através da própria vida.  Para sororidade de São  Damião este era um alimento sólido  que manava da linfa pura do evangelho, que pode e deve ser procurado ao longo de toda a vida.

Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/almir/artigos/clara/14.php acesso em 03 abr. 2011.

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