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terça-feira, 8 de novembro de 2011

O Código da Cavalaria Medieval

"O cavaleiro é o representante
de uma liberdade absoluta
que se entrega a uma causa."





Frei Vitório Mazzuco, OFM*

    Façamos uma reflexão sobre um dos pontos deste nosso per+curso de Espiritualidade que aborda o Código da Cavalaria Medieval como uma Fonte inspiracional das Virtudes sob a ótica franciscana. Francisco e Clara de Assis viveram na época medieval, tempo este que nos revela uma nítida cultura de amor. Hoje nós, pós-modernos, temos um velado preconceito sobre a Idade Média, que vaza para nós no redutivo conceito do obscurantismo, da idade das trevas, da inquisição ou do conservadorismo; mas vamos deixar qualquer leitura ideologicamente assim definida, e façamos uma pergunta: tem a nossa atualidade histórica, hoje, uma cultura de Amor? Pois a Idade Média tinha e de um modo muito nítido. É neste período que nasce, cresce e é abraçado como um projeto de vida o Ideal do Amor Cortês Cavaleiresco. O que é, e o que inspira o Amor Cortês Cavaleiresco? No meio de uma civilização rude, que conhece as batalhas, ambição, o fastígio da glória e das conquistas, o choque entre permanecer no ciclo fechado de feudalismo dominando ou abrir-se para uma nova civilização baseada nas comunas (a organização da civitas, o nascimento das cidades), entre as tensões do poder dos imperadores (que querem unir reinos) e do papado ( não podemos esquecer que neste período a eclesiologia tem força de estado e pensa como os impérios); em meio a toda esta ebulição vai surgindo uma nova linguagem, um novo costume, um sentimento novo, um novo código de comportamento.

    O que a sociedade pós-moderna de hoje tem a ver com a medievalidade ainda tão atraente? Porque ela continua a revelar uma originalidade, uma civilização que traz evidente modelo de vivência que pode iluminar e elevar o nível da civilização atual tão carente de modelos de grandeza. A Idade Média, esta época da história tão rica de expressões vitais, nos legou um modelo humano em suas dimensões mais variadas: o monge, o camponês, o intelectual, o artesão, o clero, o mercador, a mulher, a família, o santo, o guerreiro, o nobre, o leproso, o excluído. Mas, sobretudo, o mundo medieval nos passou três tipos que marcaram por demais a sociedade cristã: oratores, bellatores, laboratores. Os que oram, os que combatem, os que trabalham. Estes elementos construíram a paisagem social não só deste período, mas encontraram correspondência nos tempos que se sucederam. De todos, escolhemos um modelo deste complexo humano medieval que remetia a um princípio, a uma busca, a um projeto de vida. Escolhemos uma grande figura que é um símbolo de toda uma civilização: o Cavaleiro Medieval e seu Código da Cavalaria.


    O cavaleiro não é somente um célebre arquétipo de um imaginário sempre fascinante, mas foi o meio com o qual o ocidente cristão encarnou, organizou, e defendeu o próprio ideal de humanidade e de sociedade. Um símbolo vindo de longe, porém com uma orientação profunda, que ergueu uma ética e uma espiritualidade diferente daquela dos círculos eclesiásticos; pode-se dizer que criou uma moral leiga. O cavaleiro surge também como uma figura de edificação moral do combatente autônomo e do exército que servia os senhores feudais, uma afirmação concreta da cristandade entre os leigos, uma divulgação apaixonada do humano e do sagrado. Aí é que reside o seu ponto de atração ainda hoje vital; e o chamado que continua a fazer e exercitar constitui o lado mais profundo do interesse de hoje sobre a função da civilização medieval, num tempo atual onde vivemos uma profunda e geral crise de valores e falência do caráter.

    O mundo medieval tem como grande característica no campo das ideias gerais: as concepções religiosas que a tudo invadem e explicam; e, no mundo dos ideais do seleto grupo da nobreza, a inspiração cavaleiresca, para reduzir tudo a um belo quadro, onde brilhava a honra e a virtude; um elegante jogo de formas nobres para criar ao menos a ilusão de uma certa ordem.  Mas o que é mesmo este ideal cavaleiresco? Enquanto ideal de uma vida bela e justa, a concepção cavaleiresca tem uma característica singular: é um ideal estético na sua essência, composto de uma fantasia muito variada, plena de emoção heroica. Quer ser um ideal ético, quer valorizar um ideal de vida, colocando-se em relação com a piedade religiosa e com as virtudes vividas na nobreza, especificamente na corte. É a misteriosa mistura de consciência moral e ambição que sobrevive na pessoa humana quando já perdeu tudo: fé, amor, esperança. É aquele sentido de honra que sobrou na pessoa, e que, bem trabalhado, torna-se fonte de novas forças. Uma positiva ambição pessoal que é desejo de glória; uma vontade apaixonada de ser lembrado pela posteridade. Uma inspiração que não anda separada do culto do herói, porque a vida cavaleiresca é uma constante imitação, uma luta constante.

    Piedade, coragem, austeridade, sobriedade e fidelidade era a imagem de um cavaleiro ideal. Isto não se adquiria sem certa exigência, sem certo ascetismo. Este mundo de sentimentos ascéticos é a base sob a qual cresceu o ideal até chegar a ideia de perfeição (per+facere ): uma intensa aspiração a uma vida bela, uma energia animadora. O cavaleiro é o representante de uma liberdade absoluta que se entrega a uma causa. Tem a coragem de arriscar a sua vida por algo muito grande na medida em que a causa exige. (Esta reflexão é a síntese de um texto maior e mais aprofundado; cf. MAZZUCO, Vitório. Francisco de Assis e o Modelo de Amor Cortês Cavaleiresco. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1994.)

  • Frei Vitório Mazzuco cursou Teologia e Filosofia, em Petrópolis, e fez pós-graduação em Teologia Espiritual, na Pontificia Università Antonianum, em Roma, obtendo o mestrado. Sua tesina, publicada em forma de livro, leva por título: “Francisco de Assis e o modelo de amor cortes-cavaleiresco: elementos cavaleirescos na personalidade e espiritualidade de Francisco de Assis” (Vozes 1994). Atualmente, ele é reitor do Santuário de Santo Antônio, no Largo da Carioca, na cidade do Rio de Janeiro, professor de Franciscanismo, em Piracicaba, no Rio de Janeiro e em Petrópolis. Também é pesquisador do IFAN (Instituto Franciscano de Antropologia), entidade ligada à Universidade São Francisco de Assis, em Bragança Paulista, e dedicada às áreas de Franciscanismo, Teologia e Ciências da Religião, Estudos Humanísticos, Estudos da Cultura Moderna e Pastoral. 

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