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quinta-feira, 1 de março de 2012

O desejo do martírio em Santa Clara de Assis


Supremo amor por Cristo e em Cristo
No processo de canonização de Santa Clara também é mencionado seu desejo de martírio: “Irmã Cecília, Filha de Messer Gualtieri Cacciaguerra de Spello, uma irmã do Mosteiro de São Damião, fazendo juramento disse: que tinha ouvido de dona Clara, de santa memória, antiga abadessa do predito mosteiro, que devia ter uns quarenta e três anos que ela estava no governo das Irmãs; A testemunha entrou na Ordem uns três anos depois que a senhora tinha entrado na Religião pela pregação de São Francisco. A testemunha entrou pelas exortações de dona Clara e de Frei Filipe, de boa memória. Desde esse tempo, quarenta anos, esteve sob o santo governo de dona Clara, mas não se achava competente para falar como se deve sobre sua vida, louvável e maravilhosa, e sobre seu comportamento. Também disse que dona Clara tinha tanto fervor de espírito, que gostaria de enfrentar o martírio por amor do Senhor. Demonstrou isso quando ouviu contar que alguns frades tinham sido martirizados em Marrocos e disse que queria ir para lá. A testemunha até chorou. Mas foi antes que ela ficasse doente. Interrogada sobre quem tinha assistido a isso, respondeu que as Irmãs então presentes já tinham morrido”.
Outra testemunha afirma «Irmã Balbina de Messer Martinho da Cocorano, monja do Mosteiro de São Damião, declarou sob juramento: que estivera no mosteiro por mais de trinta e seis anos, quando era abadessa dona Clara, de santa memória, cuja vida e comportamento foram adornados pelo Senhor com muitos dons e virtudes, que de modo algum daria para contar. E a senhora foi virgem desde o seu nascimento. Era a mais humilde entre todas as Irmãs e tinha tanto fervor de espírito que, por amor de Deus, teria suportado de boa vontade o martírio pela defesa da fé e de sua Ordem. Antes de ficar doente, queria ir para Marrocos, onde se dizia que os frades tinham sofrido o martírio.
Interrogada sobre como sabia dessas coisas, respondeu que esteve com ela durante todo esse tempo, vendo e ouvindo o amor que a senhora tinha pela fé e pela Ordem”.


Ficamos profundamente emocionados por este testemunho sobre Clara, que nos narra com expressões muito vivas, o seu desejo de ir para onde os frades protomártires franciscanos haviam dado suas vidas, ao morrer por Cristo. Este testemunho nos revela o fato que Clara, permanecendo inflamada no seu íntimo, pela notícia do martírio dos frades, gera em seu corpo e em sua mente o desejo de se unir a eles. Clara é atraída pelo testemunho dos protomártires francisacanos até ao ponto de sentir dentro de si o ardente desejo de ir até à terra onde eles derramaram o seu sangue, para que assim, também ela possa dar a vida para testemunhar e defender a fé.
Este desejo de Clara, testemunhado no processo, é reflexo do desejo de Francisco, segundo as palavras de São Boaventura: aqui também se fala de um desejo vivo, um fervor de caridade poderosíssimo e do mesmo desejo de martírio de São Francisco, como se afirma no capítulo IX da Vida do Bem-aventurado Francisco (Legenda Maior): «No fervoroso incêndio de sua caridade, emulava o triunfo dos santos mártires, nos quais não se extinguiu a chama do amor nem fraquejou a fortaleza. Por isso ele também desejava, inflamado naquela caridade perfeita, que joga fora o temor, oferecer-se como uma hóstia viva ao Senhor pela chama do martírio, para corresponder assim ao amor de Cristo, morto por nós na cruz, e para provocar os outros para o amor divino. Então, no sexto ano de sua conversão, ardendo de desejo do martírio, resolveu embarcar para a Síria para pregar a fé cristã e a penitência aos sarracenos e aos outros infiéis».
Sugiro, neste momento, comparar o que consideramos até agora, com o texto da Regra não Bulada, capítulo XVI. São Francisco de Assis descreve como deve ser a atitude dos frades que forem à terra daqueles que não têm a fé cristã: “os frades que vão, podem com-portar-se espiritualmente entre eles de dois modos. Um modo é que não façam nem litígios nem contendas, mas estejam submetidos a toda criatura humana por Deus e confessem que são cristãos. Outro modo é que, quando virem que agrada ao Senhor, anunciem a palavra de Deus, para que creiam em Deus onipotente, Pai e Filho e Espírito Santo, criador de tudo, no Filho redentor e salvador, e que sejam batizados e se tornem cristãos, porque quem não renascer da água e do Espírito Santo não pode entrar no reino de Deus”.

Partindo deste texto, podemos observar que nas duas modalidades indicadas por Francisco não há uma visão “anônima” do testemunho; também o exemplo de vida - sem o anúncio explícito da Palavra - é sempre acompanhada pela confissão da fé. Posteriormente, por inspiração do Senhor, pode-se chegar ao anúncio explícito da Palavra, a fim de suscitar a fé na Santíssima Trindade. 

Considerando o caráter  confessante do testemunho desejado por Francisco para os seus frades, pode-se compreender porque os mais recentes estudos sobre o desejo do martírio, presente no início da  família franciscana,  faz desaparecer a clássica contradição sentida entre o capítulo XVI e as histórias hagiográficas sobre este ponto: de fato, o horizonte interpretativo não é aquele de um heroísmo provocado nos confrontos com uma fé diferente, mas uma expressão do amor por Cristo, a paixão de comunicar o encontro com Ele e de ser introduzido na fileira de sua imitação.


Neste sentido, as hagiografias franciscanas, particularmente dos protomártires, evidenciam que, nestes e em outros mártires franciscanos, representa-se o que aconteceu nos mártires dos primeiros séculos, ou seja, repete-se o que aconteceu nos mártires dos primeiros séculos, ou seja, a disposição de dar a vida pelo Evangelho até à morte.

Na realidade, aqui não é resultado do antagonismo religioso, que poderia parecer, hoje, uma atitude inconveniente no âmbito de uma relação pacífica com outras religiões, mas do desejo, da paixão arrebatadora pela pessoa de Cristo; é o desejo de assemelhar-se a Ele e de poder, em qualquer situação, dar testemunho d’Ele, que deu a vida por nós; desejo de martírio é, portanto, desejo por Cristo, desejo de corresponder de um modo total, ao dom que Cristo fez por nós.


Von Balthasar diz em seu famoso Cordula: “enquanto vou colocando totalmente em risco a minha vida, atesto haver compreendido a verdade cristã, como a revelação mais elevada possível do amor eterno”. O desejo do martírio - provocado ou buscado diretamente - surge como expressão radical de amor por Cristo e neste mesmo amor de Cristo por cada homem, por quem Ele deu a vida. 


O mártir cristão - seguindo os passos do próprio Cristo - expõe-se a si mesmo, por amor de Cristo e da liberdade dos irmãos; doa-se por aquilo que lhe é mais caro ao coração: o dom eucarístico, que Cristo fez de si, com o sacrifício de si mesmo, por amor da própria vida.


A palavra “martírio” indica exatamente “ser testemunhas”. Queria, nesta circunstância, lembrar duas expressões muito fortes, de Bento XVI, na exortação apostólica Sacramentum Caritatis, em relação ao testemunho e ao martírio.


Primeiramente um texto que explica a natureza do testemunho, - testemunho é uma palavra que por sua natureza preserva a auteridade: “Tornamo-nos testemunhas quando, através de nossas ações, palavras e modo de ser, um Outro se faz presente e se comunica. Pode-se dizer que o testemunho é o meio pelo qual a verdade do amor de Deus atinge o homem na história, convidando-o a acolher livremente esta novidade radical. No testemunho, Deus se expõe, podemos dizer, ao risco da liberdade do homem”.
No mesmo documento se fala do testemunho e do martírio com relação à Eucaristia, mostrando que os primeiros mártires cristãos entendiam o sacrifício de suas vidas, como o ápice da experiência espiritual, como logiké latreia, culto espiritual, ou como deveríamos dizer: culto conveniente ao humano (R. Penna): “o próprio Jesus é a testemunha fiel e verdadeira (cfr Ap 1,5; 3,14); e veio para dar testemunho da verdade (cfr Jo 18,37)... o testemunho do dom de si ao martírio, sempre foi considerado na história da Igreja o ápice do novo culto espiritual: “Oferecei os vossos corpos” (Rm 12,1). Consideremos, por exemplo, a história do martírio de São Policarpo de Esmirna, discípulo de São João: todo o drama é descrito como liturgia, como se o próprio mártir se tornasse Eucaristia. Pensemos também na consciência eucarística que Inácio de Antioquia exprime em vista de seu martírio: ele se considera “trigo de Deus” e deseja tornar-se, pelo martírio, “pão puro de Cristo”. O cristão que oferta a sua vida no martírio, entra em plena comunhão com a Páscoa de Jesus Cristo e assim, torna-se, com Ele, Eucaristia. Ainda hoje não faltam à Igreja, mártires, em quem se manifesta de modo supremo o amor de Deus. 
Temos aqui uma significativa confirmação do caráter eucarístico do martírio cristão, presente no cristianismo desde suas origens.


Aprendemos que o verdadeiro sentido da existência é dar a vida pelos irmãos, porque, como diz Jesus, não há maior amor do que dar a vida pelos amigos. Todos somos chamados a descobrir o valor determinante do testemunho da nossa fé que pode chegar até ao martírio; um testemunho que na relação com o outro, seja quem for, expõe-se a si mesmo, oferecendo-lhe aquilo que tem de mais precioso, Jesus Cristo e a verdade de seu amor; deste modo, o testemunha se oferece ao risco da liberdade do outro.


Como afirmou recentemente, o neo arcebispo de Milão, Cardeal Angelo Scola: “O martírio, graça que Deus concede aos desarmados e ao qual ninguém pode pretender, é um gesto insuperável de unidade e de misericórdia. O martírio é a derrota de qualquer eclipse de Deus, é a sua volta em plenitude, através da oferta da vida por parte dos Seus filhos. Uma entrega de si, que vence os males, mesmo aqueles “injustificáveis”, porque reconstrói a unidade, mesmo com aquele que mata. Como Jesus tomou sobre Si os nossos males, perdoando-nos com antecedência,  assim, o mártir, abraça com antecipação, o seu carrasco, em nome do dom de amor do próprio Deus, reconhecido por todos, como absoluto transcendente (verdade)”.


Por este motivo não podemos deixar de ser gratos a Clara e a Francisco, por seu desejo de martírio, como expressão de supremo amor por Cristo e em Cristo, a cada homem, aos protomártires franciscanos, a todos os confessores e mártires, a Christian de Chergé, a Shahbaz Bhatti e a Padovese: eles nos mostraram o Deus que nunca nos abandona; o rosto terno e forte do Deus da verdade, do amor e da paz.


Prof. Paolo Martinelli, OFMCap
Preside Istituto Francescano di Spiritualità
Pontificia Università Antonianum – Roma


Relatório realizado por ocasião da apresentação do livro de Giovanna Casagrande, Intorno a Chiara. Il tempo della svolta. Le compagne, i monasteri, la devozione. (Viator, 13), Edições Porciúncula, Assis, 2011 - promovido pelo Protomosteiro S. Clara - Instituto Teológico de Assis - Escola Superior de estudos Franciscanos e Medievais da Pontifícia Universidade Antonianum (Assis, Basílica de Santa Clara - sexta-feira, 15 de abril, 2011).
Pubblicato in: L'Osservatore Romano , giovedì 11 agosto 2011, p. Publicado em: L'Osservatore Romano, quinta-feira, agosto 11, 2011, p. 4. 4.
Il martire cristiano – e prima di lui Cristo stesso – non dà la morte a nessuno con la sua morte ma espone se stesso per amore di Cristo e della libertà dell'altro a causa di ciò che gli sta più a cuore: il dono eucaristico che Cristo ha fatto di sé con il sacrificio per amore della propria vita.


Tradução: Irmã Luzinete Ana Maria, OSC
Mosteiro Santa Clara
Anápolis - GO

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