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quarta-feira, 27 de junho de 2012

A tentação da palhota

 
Fr. Fabiano Aguilar Satler, ofm

Ao fim deste itinerário de visita e de presença nos lugares associados à vida de Francisco na região da Umbria, do Lascio e da Toscana, uma certeza resulta clara: Assis não é o meu lugar, a Porciúncula não é o meu lugar, o Monte Alverne não é o meu lugar. Na verdade, nenhum dos eremitérios ou igrejinhas visitadas é o meu lugar. Explico-me. Esses lugares, principalmente os eremitérios no alto dos montes e no meio dos bosques, gritam o nome de Francisco, de Clara e dos seus primeiros companheiros. Nesses lugares, as pedras, das grutas ou das igrejinhas, falam continuamente ao longo de oito séculos: Francisco, Clara, Leão, Bernardo, Inês, Egídio, Rufino, Filipa, Masseo e tantos outros nomes da primeira geração do franciscanismo. O silêncio no meio dos eremitérios grita o nome de Deus. A natureza, no alto das montanhas ou na baixada dos vales, proclama em alta voz a fonte e a origem de quem ela espelha tamanha beleza. Diante de tudo isso, a tentação resulta clara: erguer aqui a nossa palhota e estabelecer nesses santuários a nossa zona de conforto. Ceder a essa tentação seria um grave erro por dois principais motivos.

O primeiro deles é que o próprio Francisco não se estabeleceu nesses lugares. Nesse sentido, ele nada mais fez do que seguir, mais uma vez, os passos do Filho de Deus, que continuamente se afastava da multidão e subia ao monte para rezar e para descansar no Pai. O Pai, entretanto, nao deixava o seu Filho descansar e o impelia, novamente, para o meio da multidão, para revelar a ela o rosto paterno-materno-compassivo de Deus. Foi assim com Francisco, que, enquanto a saúde o permitiu, alternava períodos passados nos eremitérios com períodos de itinerância e de pregação nos povoados e cidades próximos. Estes espaços sagrados do franciscanismo, portanto, ao mesmo tempo que são patrimônio espiritual, teológico, arquitetônico e ecológico da humanidade inteira, não são, paradoxalmente, o meu espaço.

O segundo motivo é que o tempo de Francisco e de Clara, ao qual todos esses espaços nos remetem, não são, afinal, o nosso tempo. A essa constatação óbvia parecemos não dar a importância devida. Profundas mudanças marcam o nosso tempo em relação ao tempo de Francisco e de Clara. Por exemplo, há diferenças marcantes entre o primitivo sistema econômico da nascente burguesia do tempo de Francisco e o intrincado sistema econômico atual, onde a má gestão pública e econômica de um país pequeno qualquer repercute imediatamente na economia e na vida política de grandes países em continentes diversos. Começamos a viver, no nosso tempo - e estamos experienciando apenas o princípio das dores -, as consequências de uma crise ecológica inexistente no tempo de Francisco. A guerra, algo totalmente amador no tempo de Francisco (é quase cômico notar que, como Francisco, para se tornar um soldado, bastava comprar a armadura, a espada, o cavalo e, pronto, o hábito fazia o monge, nesse caso, o guerreiro), tornou-se, hoje, uma indústria bélica com vida própria e acima dos governos nacionais. E, para citar apenas uma última diferença, talvez a mais significativa delas para nós, franciscanos e franciscanas, Deus não ocupa mais, no nosso tempo, o horizonte que ele ocupava na sociedade feudal do tempo de Francisco. A pós-modernidade é uma realidade com a qual ainda não aprendemos a lidar ou apreender de maneira satisfatória.

Diante dessa realidade, nós, franciscanos e franciscanas, temos a tarefa irrenunciável de discernir os elementos fundamentais do franciscanismo das origens e de traduzí-los para o nosso tempo e para o espaço social onde nos inserimos. Renunciar ou executar mal essa tarefa significa perder a nossa relevância carismática no meio da Igreja e do mundo. Se isso vier a acontecer, vamos morrer lenta e inexoravelmente e nos transformaremos em um capítulo, volumoso, certamente, nos anais da história eclesiástica. Essa não é uma realidade totalmente implausível. Como na teologia dos textos bíblicos, uma boa hermenêutica se fundamenta em uma boa exegese. Para ensaiarmos uma tradução significativa para o nosso tempo do franciscanismo das origens, é necessária uma compreensão adequada dos elementos fundamentais do fenômeno que foi o movimento de Francisco e de Clara. Se não fizermos isso, cairemos no erro de, a exemplo de alguns grupos de cunho pentecostal, que se multiplicam na Igreja do Brasil, nos fantasiarmos com um hábito franciscano e nos entregarmos à falta de higiene e de formação a que é submetida a população de moradores de rua. Esses grupos são sinceros na sua intenção. E pitorescos e exóticos. Nada mais.

Assim, de uma maneira bem simples e informal, mais rezado no coração nestes dias de passagem pelos santuários franciscanos, do que refletido com a ajuda imprescindível das ciências acadêmicas, tento discernir alguns desses elementos, sobre os quais, acredito, há um certo consenso.

O primeiro desses elementos do fenômeno franciscano é a dimensão da fraternidade. Essa dimensão é uma consequência lógica da identificação de Francisco com o crucificado, que, com a encarnação, se fez nosso irmão e que sentenciou: todos vocês são irmãos (Mt 23,8). A fraternidade exprimiu-se de maneiras diversas na vida de Francisco e de Clara: no amor aos irmãos e às irmãs, nos regulamentos da vida comum, na organização dos serviços de governo da fraternidade. na sua comunhão com a Igreja, na sua irmandade com as demais criaturas e no envio missionário. A fraternidade na vida franciscana manifesta-se no microcosmo das relações interpessoais dentro da fraternidade local de frades, freiras ou franciscanos seculares, e no macrocosmo da fraternidade em níveis mais amplos: outros atores dentro da Igreja, sociedade e o restante da criação. Na sociedade civil, um termo fala forte: solidariedade. A fraternidade é o nome cristão para a solidariedade. O franciscanismo poderia fermentar as estruturas e a hierarquia da Igreja com um pouco mais de fraternidade. Teríamos, então, estruturas mais fraternas e menos piramidais, mais inclusivas e menos exclusivas, mais femininas e menos machistas de discernimento e de tomada de decisões na Igreja. E a Igreja teria, então, um lastro moral para propor, ao mundo, essa mesma fraternidade cordial e organizacional que ela vive. Infelizmente, pelo menos nos três ramos da Ordem dos Frades Menores, essa cultura organizacional fraterna foi perdida logo a seguir à morte de Francisco. Desde o generalato de São Boaventura, a Ordem Franciscana encontra-se dividida e discriminada institucionalmente entre frades clérigos (padres) e frades leigos (irmãos), sendo proibido a esses últimos o acesso ao ministério de superiores na Ordem. Essa discriminação fere a fraternidade querida por Francisco, que se veria, hoje, proibido de governar a sua fraternidade como ele o fez, até que renunciasse em favor de outro irmão, Pedro Catani. Por mais grave que essa discriminação possa parecer para alguns, não o é para a quase totalidade de frades na Ordem, clérigos e mesmo leigos. Neste sentido, pelo menos para os frades menores, sobre o tema da fraternidade deveria ser feito, paradoxalmente, o mais absoluto silêncio, sob o risco de expormos, ainda mais, a nossa arraigada incoerência institucional a respeito.

O segundo elemento é o primado de Deus e a centralidade de Jesus como acesso à vida trinitária. Visitando as igrejas de Roma e das cidades medievais do itinerário de Francisco, uma constatação foi-se confirmando: das igrejas medievais que sobreviveram aos terremotos ao longo dos séculos, poucas sobreviveram ao renascimento e ao barroco.  Do lado de fora ficou a fachada medieval em pedra. No interior, a exuberância do renascimento e do barroco, que substituiu a construção original. Há algo de carnavalesco nas igrejas renascentistas. O desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro são um grandioso e bonito espetáculo de cores e de esculturas imensas compondo carros alegóricos cada ano maiores. Correndo o risco de parecer grosseiro, a sensação ao entrar em uma igreja renascentista foi essa: adentrar uma imensa Marquês de Sapucaí, sem samba e silenciosa, sem corpos nus, mas com pessoas vestidas com decoro, com esculturas feitas não de isopor para durarem a efemeridade de pouco mais de uma hora, mas de mármore para a posteridade. Tudo é belo. Entretanto, o olhar e a atenção se perdem diante de tantas esculturas, pinturas e mosaicos. Onde está o altar? Onde está o crucificado? Onde está o ressuscitado? Por ali, no meio daquela profusão de esculturas e de pinturas de santos, de papas, de anjos e de outras coisas que a criatividade humana foi capaz de fazer. Uma igreja medieval, como a de Santa Maria Maior, ao lado da casa do bispo, em Assis, é diferente. Há apenas a parede nua em pedra e o crucifixo ao fundo, com o altar. Desde a entrada, os nossos olhos se fixam apenas em um elemento: o ícone do crucificado. Abrimos e fechamos os nossos olhos na oração e temos sempre à nossa frente a mesma imagem: o crucificado. A mesma experiência pode ser feita nas igrejinhas dos eremitérios franciscanos. Talvez se trate apenas de uma experiência e preferência estética. No Brasil, entretanto, a profusão barroca é mais do que uma realidade arquitetônica ou estética. É uma forma de religiosidade que continua a marcar a nossa Igreja. A pessoa de Jesus e do seu evangelho encontram-se misturados e perdidos em um emaranhado de santos, de ladainhas, de novenas, de promessas e de outros produtos religiosos, que o pentecostalismo católico tenta manter vivo por meio de um marketing de caráter duvidoso. Puebla ressaltou o papel da religiosidade popular na América Latina. Mas, será isso ainda válido na geração da internet? A religiosidade barroca dos nossos pais está tendo alguma incidência na vida dos filhos? Acredito que pouco e, certamente, menos ainda em um futuro próximo.

Nesse contexto, como propor às novas gerações a experiência salvífica do crucificado-ressuscitado que guiou o itinerário de Francisco? Como devolver à nossa Igreja a dimensão mistagógica dos seus ritos e sacramentos, levando àqueles que neles tomam parte uma transformação cristificante, a exemplo do que aconteceu com Francisco e Clara? Como passar do rito à vida e da vida ao rito em uma sociedade tão conflituosa e violenta como a brasileira? Acredito que esse caminho franciscano passa a léguas de distância do triste espetáculo de mal-gosto em que tem se transformado a celebração da eucaristia no Brasil, que tem servido mais para emoldurar o ego de padres televisivos e cantores, do que para sinalizar o mistério do crucificado-ressuscitado presente em nosso meio. Nas nossas passagens pelos grandes santuários franciscanos, pudemos experimentar um pouco da beleza que o rito e o canto proporcionam ao orante. Essa milenar tradição orante da Igreja pode ser um ponto de partida para oferecer alimento saudável às novas gerações.

Finalmente, o terceiro elemento talvez seja a dimensão ecológica do carisma franciscano. Assis e os seus arredores são exatamente aquilo que o nosso coração imagina: uma cidade cercada de oliveiras, de trigais manchados de flores campestres, onde o vento faz movimentos como nas águas de um oceano, cheia de canto de pássaros. Os eremitérios franciscanos são um misto de rocha bruta mesclado com um verde próprio dos bosques daqui. Junte-se a isso o céu azul, o canto dos pássaros, o sibilar do vento e o silêncio das montanhas e compreendemos com facilidade a personalidade ecológica de Francisco. Nele foram reunidas todas as virtudes cardeais ecológicas. Quando nos deparamos com os vícios e males ambientais da sociedade brasileira, compreendemos a atualidade de Francisco de Assis. Talvez esteja no nosso empenho pela integridade ambiental  a principal contribuição da família franciscana do Brasil à diversidade carismática da Igreja. Há uma séria crise ambiental em curso em relação à qual estamos fechando os nossos olhos. Estamos nos comportando como os nossos antepassados do regime colonial e monárquico, que fecharamos os olhos à grave questão da escravatura negra e encheram os conventos franciscanos e clarianos no Brasil com mão-de-obra escrava. Vamos perder, mais uma vez, o bonde da história?

A Amazônia tornou-se uma das principais praças mundiais no que se refere à crise ambiental. Nela, tudo assume grandes proporções: a extensão geográfica, a imensidão das matas, o porte das árvores, a extensão dos rios e a capilariedade da bacia hidrográfica, o volume de água doce, a biodiversidade, a variedade étnica e linguística dos povos indígenas. Mas, nela igualmente assumem proporções catastróficas a devastação das matas, as queimadas, os conflitos relacionados com a invasão de reservas indígenas, a ambição das mineradoras e os projetos bilionários do Governo Federal para a região. Para grandes obras, grandes desvios de dinheiro para o caixa dois do partido no governo e de seus aliados. Um mapeamento da presença franciscana no Brasil mostrará o quanto estamos ausentes dessa realidade. Vamos perder, mais uma vez, o bonde da história?

Apesar da ilusão presente, não acredito que o cristianismo do futuro no Brasil seja um fenômeno de massas. Menos ainda o será a vida consagrada e, por extensão, a vida franciscana. Temos uma opção simples a fazer: ou sermos uma minoria qualitativa que projeta o seu futuro em uma determinada direção, ou meros administradores de trabalhos e obras herdadas, instalados comodamente em nossa zona de conforto.

No eremitério de Montecasale, há um simpático e idoso frade capuchinho. Lá, ele conta com um sorriso no rosto uma história apócrifa relacionada com São Francisco durante a sua estadia nesse local. Conta-se que, nesse local, dois jovens procuraram Francisco desejando tornarem-se frades. Francisco os levou até a horta e pediu aos dois para ajudá-lo a plantar couves da maneira como ele fazia: com raízes para cima e as folhas enterradas. Um dos canditados assim o fez. O outro, entretanto, replicou: mas, não é essa a forma de se plantar o que quer que seja; as raízes devem ser postas na terra. São Francisco replicou: vejo que és inteligente; não és, porém, obediente. E dispensou o jovem. O outro candidato que plantou a couve tal qual fora instruído por São Francisco, tornou-se, alguns anos depois, o guardião da fraternidade de frades desse lugar. E, conta-se, também, que a sua couve plantada às avessas enraizou e produziu belas folhas, enquanto a outra secou e murchou. Essa pequena história, piedosa, como tantas outras acerca de São Francisco, carrega uma verdade profunda: quem quiser se colocar na estrada do seguimento de Cristo, ao modo de Francisco, deve aprender a plantar couves com raízes para cima, isto é, fazer as coisas e ser de um jeito diferente do esperado.

A morte de Cristo e o seu retorno à comunhão trinitária tem um motivo pedagógico: permitir que amadurecêssemos enquanto Igreja, que aprendêssemos a caminhar com nossas próprias pernas, guiados pela memória do ensinamento e da prática de Jesus. Também Francisco sentenciou próximo à sua morte: fiz a minha parte, o Senhor vos ensine a fazer a vossa. Para discernirmos a parte que nos cabe, é importante subir os lugares ermos do franciscanismo da Itália e os lugares ermos no Brasil. Mas, tão importante quanto subir é descer e discernirmos a presença salvadora de Deus na conflituosa história humana.

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